Entregar-se para vencer

O barulho da chave na porta me tira atenção do livro e levanto o olhar justo quando ele entra na sala com a mala e a mochila de equipamento. Deixo o livro aberto na página 47 pra não perder o ponto da leitura, ao lado da minha própria mala ainda jogada no chão, e ele atravessa a sala aflito, uma mão ao peito. Com algumas horas de diferença, chegamos ambos da Rio+20, a Conferência da Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, que acabou na noite anterior. Só que ele acabou de perceber que esqueceu seus HDs, sua vida e obra, no banco de trás do táxi que o trouxe do Aeroporto de Congonhas até em casa.

Mas tudo bem. Muita calma. Vamos lá. Temos um recibo: R$ 34, uma rubrica e uma placa. A letra do meio está ilegível, mas o número é com certeza 3985. Será que é um Y, um Z ou um T? Acho que é um Y. Vamos com o Y. No computador, descobrimos que Congonhas tem duas frotas de táxi, e cada uma tem mais de 600 placas. A placa que temos em mãos, inacreditavelmente, não está filiada a nenhuma das duas. Inércia compulsória – o que fazer, afinal? Aleatoriamente tentamos algumas palavras chave no google. Ligo pra uma amiga taxista que sugere a Prefeitura de São Paulo: 156. Ali me informam que o Sindicato dos Taxistas tem registro de todos os veículos e motoristas em circulação na cidade. “Mas a senhora só vai conseguir falar lá na segunda pela manhã”, me diz a voz do outro lado da linha.

Não dá pra esperar. São 18h de sábado. Saímos então em busca de um milagre. Calço uma bota por cima da calça de ginástica, descabelada e desacreditada, e voltamos ao mesmo ponto onde tudo começou. Congonhas. No guichê da companhia e após alguma insistência, uma revelação: o motorista é o Dimas e o táxi é um Meriva. Outra placa. Nada a ver com a que temos. “Outra placa?”, pergunto de forma retórica. “É, e o telefone dele mudou”, responde o funcionário. “Mas então como sabemos que é ele?”.

Enquanto eu corria pra cima e pra baixo do lado de fora rastreando uma placa errada, eles olharam as imagens de segurança da câmera do ponto. Calcularam a hora de partida, voltaram o vídeo até verem meu companheiro entrando no carro. Com a nova placa memorizada, retomo minha aeróbica térmica na noite fria pela calçada dos taxistas, buscando o Meriva e o Dimas até ambos aparecerem.

Jovem e com cara de gente boa, bem-vestido, o Dimas abre o carro pra gente e já avisa que não encontrou nada. “Eu nem olhei aí pra trás depois que você desceu”, ele diz, dirigindo-se a meu companheiro. Em vão, nossos olhos buscam os recôncavos do carro, embaixo do tapete, entre o assento e o encosto do banco, no porta-malas, sob banco da frente. Não estão ali, mas parar de olhar é pior. “Você pode nos dizer onde levou o último passageiro?” “Posso”, responde com calma, “foi no Mercure Hotel do Brooklin, ali perto da Berrini. Tô aqui com o boleto deles, tem o endereço. Acho que eles eram indianos.”

Eles? Sim. Um grupo de 21 indianos chegou ao aeroporto pouco depois do meu companheiro e solicitou o serviço de vários táxis, “uns cinco”, para levar todos eles ao hotel. O Dimas acha que eles eram indianos e sabe que não falavam português, só um no carro dele falava inglês. Voltamos ao balcão interno da companhia de táxis pra verificar, mais uma vez, a filmagem de segurança. Achamos o momento em que dois deles chegam pra comprar os boletos. Congelamos a imagem e tiro uma foto com o celular, pra reconhecê-los no hotel. O Dimas vai junto, “pro caso de os caras não acreditarem na gente”, foi o que ele disse.

No Mercure, a recepcionista desmotivada chama um dos integrantes do grupo, alguém que fale inglês. A jovem com piercing no nariz que surge é solícita, gentil e chama o rapaz da foto do celular, aquele que comprou o boleto. Em hindi ela fala ao telefone e o rapaz desce à recepção. Mostro a ele também a foto do celular em que ele próprio aparece, ao lado de um senhor. “Ele disse”, aponto para o Dimas, sentado no sofá, “que o outro homem na foto estava no táxi dele”. Todo arregalado, o rapaz me pede para esperar enquanto volta ao andar dos quartos para saber se alguém entre os demais 19 membros do grupo encontrou os HDs.

Passados mais alguns minutos desce o outro homem da foto, o senhor que falava inglês. Soltamos um “Ahh” uníssono e aliviado quando avistamos a bolsinha com os HDs em suas mãos. Salto do sofá da recepção e tenho vontade de abraçá-lo, mas pressinto o desconforto e me detenho. “Pensei que vocês fossem da polícia quando vi a foto no celular”, confessa o mais jovem. Me desculpo pelo mal-entendido e ofereço uma cerveja brasileira e amiga. Polidos e assertivos, eles recusam. Não bebem. Ainda bem que não tentei abraçá-los quando tive o impulso e me poupei de mais um desrespeito cultural prestes a ser cometido. A cerveja já era, já foi.

O clima entre nós é muito amistoso. Cordial. O indiano mais velho é advogado e, com o restante do grupo, acaba de chegar do Rio de Janeiro, da conferência da ONU, onde participou junto a uma ONG. “Nós também voltamos de lá agora”, contamos. Cuidadoso, ele faz perguntas, aqui e acolá, para ver se somos, de fato, os proprietários daqueles pedaços de plástico fabricados na China e que, não fosse pelo que contêm, teriam pouco valor. Tiramos fotos juntos. Trocamos e-mails, agradecimentos e falamos de comida indiana, uma grande favorita aqui em casa. Oferecemos nossa ajuda para o que precisarem em São Paulo e eles oferecem suas casas na Índia, “país que devemos conhecer”. Não é a primeira vez que ouvimos isso.

Já em casa e instalada após três horas de adrenalina, investigação e perseguição, volto ao livro aberto sobre o sofá da sala. “Shantaram”, de Gregory David Roberts, é autobiográfico e conta uma série de episódios na vida deste homem que, no início da história, foge da Austrália, onde foi condenado a 20 anos de prisão, e chega a Bombaim, na Índia. Na página entreaberta desde cedo, lê-se: “Sometimes, in India, you have to surrender before you win” ( Às vezes, na Índia, você tem que se entregar antes de vencer).
Contamos nossa aventura a um amigo americano de visita em São Paulo e ele disse que “só no Brasil mesmo. Isso nunca aconteceria em Nova York. Ninguém faria isso!”

Vai saber… Meu companheiro atribui o desfecho positivo à Índia, não ao Brasil: “Quando o Dimas disse que eles eram indianos, sabia que estávamos com sorte.” O episódio até se passou em São Paulo, mas o que sentimos foi uma grande presença da amiga francesa, ausente desde 2009, e que nos ensinou que as pessoas da Índia são assim, abertas. Ela também achava que a Índia devia ser conhecida. “That is how they manage to live together, a billion of them, in reasonable peace”, li mais adiante no livro de Roberts.“They are not perfect, of course. They know how to fight and lie and cheat each other, and all the things that all of us do. But more than any other people in the world, the Indians know how to love one another” ( É assim que fazem para viver juntos, bilhões deles, em razoável paz. Eles não são perfeitos, é claro. Eles sabem brigar e mentir e roubar uns aos outros, e tudo o que todos nós fazemos. Mas mais que qualquer outro povo no mundo, os indianos sabem como amar uns aos outros). É, foi sorte mesmo.

Estação da Luz, São Paulo, by Maria Bitarello

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